sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Maluco do Punhal | Cap. 19


(Leia o primeiro capítulo da série: Maluco do Punhal Cap. 1)  

O delegado Frederico era o único na cidade que parecia ignorar a influência do coronel Abigail sobre as esferas do poder – legislativo, executivo e judiciário. Embora não ousasse enfrentá-lo, olhava com certa indignação para os abusos praticados por ele e seus filhos arruaceiros. Quando assumiu aquela circunscrição policial, há cinco anos, percebeu que havia uma espécie de lei do silêncio quando o assunto eram os moradores do suntuoso palacete. Dedicou alguns segundos à recordação do primeiro encontro.

Eram 10 horas, manhã de sol, ele acabara de ser apresentado a todos os funcionários da delegacia. O clima de boas vindas, com toda aquela preocupação da sua nova equipe em demonstrar simpatia e não macular a primeira impressão, foram varridos com a aparição daquela figura miúda, carregando no rosto um sorriso comprimido que mais parecia uma expressão de nojo.


O coronel Abigail começou a falar ainda sob os umbrais da porta principal. Sua voz era altiva, intimidadora, carregada de uma intransigente autoconfiança. – Onde está o delegado Frederico? - Assumiu um tom grave antes de emendar. – Vim visitar meu mais novo amigo. 

Continua na série de posts "Maluco do Punhal"

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Maluco do Punhal | Cap. 18


(Leia o primeiro capítulo da série: Maluco do Punhal Cap. 1)  

O telefone tocou, quebrando, com um estardalhaço exagerado, o silêncio na mansão do coronel Abigail. O velho emergiu do estado de introspecção no qual estava mergulhado. Atendeu. Era o delegado Frederico. A voz segura e ameaçadora trazia más notícias. Sem ponderações, desatou a falar sem deixar transparecer qualquer vestígio de sensibilidade:

 – Seu filho, o que chamam de Buzina, foi atingido com um tiro no peito. Segundo os peritos, o projétil deve ter atingido o coração. Ele morreu na hora. O corpo está no bar de Zé de Piló. Já era para o senhor ter sido comunicado, mas o oficial encarregado de fazê-lo hesitou. Novato, não quis ser o portador da notícia ruim. Sabe que o senhor inspira neles certo temor...

O poderoso Abigail já não ostentava a mesma imponência desde a visão, mais cedo, da lâmina brilhando ao sol. Sabia que aquela aparição macabra traria o mal consigo e recebeu aquela informação com uma estranha tranquilidade. Interrompeu laconicamente a fala sem pausa do delegado Frederico:


 – Certo... estou... indo. 

(Continua no décimo nono post da série: Maluco do Punhal | Cap. 19)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Rumo (In)certo



Nasci por um descuido e acabei como o mais amado da prole, causador de ciúme entre os planejados. Cedo, tornei-me a personificação das voltas que o mundo dá. Responsabilidade demais para alguém sem habilidades notáveis à primeira vista. Mas não há opções para os que vivem. Todos os que colocam os pés neste mundo protagonizam uma jornada. Até quem opta pela estagnação está adotando um caminho. Esgueirei-me entre as esferas sociais, em busca de um ponto de equilíbrio entre abastados e famintos, já que os extremos sempre me transmitiram desconforto. Essa estranha patologia nunca aparece nos exames de sangue, mas habita minhas entranhas e faz cócegas no meu córtex pré-frontal. Vou ficar por aqui, aliás, vou instalar-me ali mais adiante, cercado por aquela grama mais verde, não verde vibrante como nos pastos que adornam o horizonte, mas certamente mais verde que a relva que emudece sob meus pés. 

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Maluco do Punhal | Cap. 17


(Leia o primeiro capítulo da série: Maluco do Punhal Cap. 1)  

Onde está o punhal? Onde está o punhal? Repetia mentalmente ignorando as promessas de vingança pronunciadas pelo seu companheiro de quarto. O forasteiro vestia apenas um avental com amarras frouxas nas costas. Estava descalço e sem as roupas de baixo, mas apenas o objeto afiado e brilhante lhe fazia falta naquele instante.

Revistou com os olhos cada canto do cômodo, deixando evidente a invasão súbita do desespero. O olhar parou numa pequena escrivaninha de duas gavetas. Levantou-se num salto, mas o percurso até o móvel foi interrompido por algo que agarrou seu pulso com firmeza. Uma algema o mantinha ligado ao leito de metal. 

(Continua no décimo oitavo post da série: Maluco do Punhal | Cap. 18)

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Amanhã vou acordar adulto



O tempo me arrasta para um terreno desconhecido, cada vez mais longe da saudosa infância, indiferente a todos os meus esforços para fazê-lo parar. É como se eu tentasse congelar um vídeo em execução usando um controle remoto sem baterias. O instante da transição se aproxima, cruzarei totalmente a linha que corta em duas partes iguais o caminho entre os 20 e os 30 anos. Ter 25 não é muito diferente de ter 24 ou 23, mas 26 não, 26 é o outro lado da linha. Ter 26 e ter 30 é quase a mesma coisa. Vou ensaiar uma cara amarrada no espelho, pensar num bom lugar pra esconder os brinquedinhos que preenchem os vazios da minha mesa... e dar adeus aos últimos vestígios da criança imaginativa que um dia fui. Não tem mais pra onde fugir. Amanhã, 15 de junho, vou acordar adulto!

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Maluco do Punhal | Cap. 16



(Leia o primeiro capítulo da série: Maluco do Punhal Cap. 1)  

Tudo que é novo incomoda. Seja um sapato novo ou um novo buraco no sapato velho. O que dizer, então, de uma mudança repentina, para uma cidade distante, tão surpreendente que até a despedida dos amigos de infância lhe foi vetada? A alegria de Margarida havia ficado para trás, dando lugar a uma vida escura, privada da liberdade, cercada pelo medo de algo que nem sabia o que era. Assim tem vivido seus últimos 10 anos.

Uma lacuna em sua memória, como se tivessem passado uma borracha em um pedaço generoso daquele último dia antes do ingresso na nova vida, ainda a deixava mais confusa. O que aconteceu durante este lapso? Ela não sabia a resposta, mas dentro de si sentia que todo esse sofrimento homeopático era merecido. Inclusive a mudança no comportamento do pai, o coronel Abigail, que com o passar dos anos ficava perigosamente obsessivo. Aparentava superproteção, mas seus olhos profundos e intimidadores às vezes deixavam transparecer desejos doentios.

Agora, enquanto massageava o braço dolorido, Margarida tentava compreender a brusca mudança no curso de sua vida. Se ela tivesse conseguido chegar à janela... se tivesse contemplado elementos do seu passado perdido... talvez, naquela tarde de calor hostil, a peça que faltava no quebra-cabeça encontrasse o devido lugar.  

(Continua no décimo sétimo post da série: Maluco do Punhal | Cap. 17)

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Notas inpensadas


Fluxo de consciência das 14h54 


Ele sempre dizia não, qualquer que fosse a pergunta. Se perguntasse se ele era macho, ele disparava um surpreendente não, se lhe ofereciam uma deliciosa sobremesa, ele respondia com um não bem mastigado, se questionavam quanto era 2+2 ele respondia com um incoerente não. O apelidaram de Du Contra, sem saberem que este era seu nome de batismo. Era mesmo uma figura, tanto que sempre me imaginei entrevistando-o. Um dia tive a oportunidade de abordá-lo e perguntei se poderia escrever uma matéria sobre ele. Ele, prontamente, respondeu que não! 


Fluxo de consciência das 15h26 

Os cabelos dela cheiravam a rosas. Na verdade eu nunca havia cheirado aquelas densas madeixas, mas eram tão belas que só poderiam cheirar a rosas. Essência é isso. Aroma, consistência e aparência em perfeita harmonia. No meio daquela cascata de rosas só faltava eu. Não sei nadar, mas me afogaria com prazer entre aqueles fios provavelmente cheirosos. Mesmo há cerca de dois metros de distância, inspirava com intensidade, a ponto de dilatar os pulmões, tentando sentir o suposto perfume daqueles cachos. E, acreditem, só sentia perfume de rosas... 

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Fluxo de consciência das 13h33 

Dois dias ou três são suficientes para comer um bode com chifres e tudo. Depois de algum tempo você consegue em 12 horas. Mas para que serve comer chifres? Quem come seja lá o que for depois tem que colocar pra fora e ninguém gosta de colocar chifres pra fora. Será, então, que comem para que eles não fiquem à vista? Faria sentido se os chifres não fossem de um bode. Não há porque se incomodar com os chifres do bode, pois todo bode tem chifres e nem o bode se incomoda com isso. Coma bode, mas não coma o chifre!